Mais uma tarde junto dela, mais algumas horas de tortura, mais um dia tendo que em segurar. Eu poderia jurar que aquele dia estava sendo apenas mais um dos dias em que eu teria que desviar meus olhos para que o seu olhar intenso não penetrasse minha alma. Mais um dia em que eu teria que andar ao seu lado pela rua, contando lembranças a fazendo rir, dispersando-a de seus devaneios. Ela, a garota da qual eu amava, que me virava de ponta a cabeça e fazia meu estomago embrulhar cada vez que me esquecia do seu poder, poder daquele olhar. Seria mais um dia daqueles, ela sempre foi uma menina muito distante, ela era diferente. De certa forma.
Estávamos andando pela rua, em direção à sua casa, ela estava mais distante que o normal, olhava para frente e seus olhos vagavam os detalhes do concreto rachado da calçada. Respirei fundo e pus me a tentar tirá-la de seus devaneios, como sempre. Abri a boca para falar, mas o meu movimento repentino a fez virar o rosto para mim, eu surtei por um momento, desisti de falar. Ela não estava tão distante assim. Andamos em silêncio até chegar à sua casa, como de costume eu esperei na porta para que ela gritasse à seu pai que estávamos entrando em casa, ela havia aberto a porta, nenhum sinal de que fosse usar a vos.
Ela entrou e sentou na cadeira sem encosto do computador, eu sentei em sua cama, havia algo de muito errado com ela.
— Ana?
— Sim? — ela girou na cadeira, ou melhor, girou a cadeira se virando para mim, e com uma expressão inexplicável ela procurou algo ao redor das minhas mãos, que estavam sobre o lençol.— Você não chamou teu pai
— Bem, — ela riu — porque se eu quisesse chamá-lo teria que usar o telefone. — ela sorriu, e antes que eu bufasse com alguma pergunta ela prosseguiu — Ele não está em casa.
— Ah, sim.
Por alguns segundos ela observou minha feição, fechando os olhos em uma fenda fina e franzindo o cenho com uma força desnecessária, ela riu e virou para o computador.
Ana me considerava seu melhor amigo, mas eu não curtia nem um pouco ser o ombro amigo. Ela despertava em mim sentimentos calmos e intensos, e alguns desejos, claro. Ela sempre tinha o costume de ouvir a mesma música quando começava a usar o computador, “Hallelujah – Kate Voegele”. E eu poderia jurar que sua vos sobre a vos da Kate Voegele, na música, era mais suave do que a de qualquer garota. Ela então virou-se para mim olhou para o lado e em meio a um sorriso confuso começou a falar.
— Você — ela olhou em meus olhos, com toda aquela intensidade que me deixava fora de mim — você considera a música uma coisa essencial, não?
— Claro, eu não conseguiria viver sem, e acho que todos concordam comigo. Inclusive você.
— Sim, de um modo apenas.
— Como assim?
— Pense comigo, mas não fuja para outros pensamentos, pense comigo.
— tudo bem. — e então ela começou a falar, e eu não consegui tirar os olhos nem os ouvidos dela.
— Todo mundo diz que a música é essencial, você mesmo disse. Mas, e os surdos? Não, é sério. Os surdos não podem ouvir, eles nunca vão ouvir um som, a ciência pode tentar de todas as formas, se conseguir, muito bem, mas de qualquer forma. Os surdos vivem e não precisam do som para sobreviver. E veja, não só no caso da música.
— Como assim? — Ela levantou e sentou ao meu lado, virando-se para mim e fazendo com que eu virasse também. Eu estava dominado pelos olhos dela, mas eu prestava atenção em cada palavrinha dita por ela.
— Nós não precisamos ver também. — ela disse passando a mão sobre meu rosto, fazendo com que meus olhos ficassem fechados. — Nós não precisamos ver.
— Mas — de olhos fechados, franzi o cenho indignado com seja lá em que devaneio tivesse surgido essas coisas.
— Shh — ela disse suavemente pondo um dedo sobre meus lábios. — E então, nós não precisamos ver ou falar. Vendo por um lado, as pessoas vivem sem tato, sem voz, sem ver e sem ouvir. E ninguém precisa disso. E eu não acho que isso seja algo a toa, entende? Eu acho que tem um motivo.
— Olha, as pessoas falam tanto sobre as coisas essenciais. Sobre a música, o andar, o ver. A beleza exterior, uma voz, o jeito de falar de uma pessoa, o jeito de escrever. Mas nada disso importa tanto, é como se de alguma forma Deus quisesse nos mostrar que nada é necessário. Só uma coisa. E por essa coisa, nós não precisamos ouvir, falar e nem ver. — o silêncio rondou o espaço, eu senti meus dedos trilharem pelo lençol, sentia formigas subindo pelo meu pescoço. — Eu acho que Deus, ou seja, lá quem, talvez seja o nosso organismo e não um Deus, se é que el existe. Mas de alguma forma, alguma coisa está de todas as formas tentando nos dizer que a única coisa essencial nessa vida é aquilo que nós não precisamos ver ou ouvir. E não precisamos falar durante. Comer, beber... — o silêncio novamente rondou o espaço, e desta vez eu senti vontade de falar, mas ela me calou com o inesperado. Seus lábios tocaram o meu com intensidade e lentidão e lá se demoraram. Ela se afastou com as mãos segurando meu rosto, eu podia sentir sua respiração e isso ajudava, pois eu havia perdido o ar.
— Eu... — ela me interrompeu novamente.
— Nada é tão necessário, acho que o mundo inteiro ainda não entendeu que a única coisa que a gente realmente vai sempre querer e de alguma forma precisar, será o amor. E em um pequeno gesto, — ela me beijou novamente, parou e se afastou, encostando-se à parede. — E as coisas só irão melhorar quando o mundo entender isso. — abri os olhos e ela me observava, sorrindo. — E sabe de uma coisa, não só esse amor. — a forma como ela disse "esse amor" fez estremecer meus nervos. Eu queria roubá-la para mim e tirá-la daquela filosofia. — mas o amor que podemos demonstrar de todas as formas, com um abraço, um beijo no rosto. Todas essas coisas da qual nós não precisamos ver, ouvir ou falar. Vai ser sempre o mesmo que vamos buscar, o amor. Seja lá de qual forma. — Ela sorriu.
— Isso tudo para me beijar?
— Não, para me livrar. Me livrar das dores e de toda a preocupação.
— Preocupação?
— Sim, de que algo mais existisse aqui além de amor. Algo como interesse, música, beleza ou algo como isso.
— E você acha que eu te amo? — é claro que sim.
— Não, mas eu te amo. — mordi meu lábio inferior ao ouvir aquilo, eu estava estressado e confuso, ao mesmo tempó eu queria beijá la e dizer que a amava também. E eu o fiz, alguns segundos após aquilo. E ao ir embora, após passar horas lembrando dos beijos, me veio a cabeça tudo o que ela falou. Me veio como a coisa mais importante no mundo, como as palavras mais fortes. Eu poderia ser cego, surdo e mudo. Eu iria querer a mesma coisa, eu poderia ser cego, surdo e mudo, mas não poderia viver sozinho. De alguma forma aquilo fazia mais sentido do que a própria existencia. E talvez seja isso, toda a resposta. Fomos feitos para amar, de qualquer forma, demonstrar de qualquer forma. Mas a forma mais verdadeira de se demonstrar o amor é com um gesto em que não é preciso palavras, coisas materiais e nem um som. O gesto mais bonito de um ser humano, algo que não se paga e nem se recebe para fazer. O essencial, o nosso bom e velho amor.
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